Voto Impresso Auditável

Voto auditável, urna e impressora

Por Renato de Castro Menezes*
Seria nossa urna eletrônica, sem a conferência impressa, aceita pelo critério alemão?

A PEC 135/2019, mais conhecida como a PEC do voto impresso auditável tem causado inúmeras controvérsias. Infelizmente ela ganhou um contorno mais partidário do que técnico. Virou o “Projeto do Bolsonaro”, ao qual os partidos de oposição devem derrotar, pois seria uma “derrota do Presidente”. Mas seria mesmo uma derrota “do Presidente”?

Curiosamente, um dos primeiros políticos que se insurgiram contra a votação eletrônica foi Leonel Brizola, fundador do PDT, partido que hoje está na oposição ao governo. Brizola queixava-se da Urna Eletrônica; “Perdemos o direito de recontagem” dizia ele.  O PDT, diga-se de passagem, tem sido a exceção honrosa nesse processo, mantendo-se fiel à posição do seu fundador e apoiando o voto impresso, mesmo que hoje seja um projeto que conte com o apoio do Presidente da República, seu opositor.

Seria interessante que as paixões políticas fossem agora deixadas de lado e entendêssemos o que está em jogo. O princípio democrático da supremacia do poder popular é importante demais para estar restrito a discussões partidárias ou de tecnocratas. Uma forma de se verificar se estamos trilhando o caminho correto é compararmos o nosso processo eleitoral com o de outros países democráticos. E o Tribunal Constitucional Alemão (BVerfG), equivalente ao nosso STF, já se debruçou sobre o tema em 2009, decidindo de forma absolutamente contrária à nossa Corte Constitucional.

Máquinas de votar não são proibidas na Alemanha. Mas os requisitos para sua implementação são bastante severos. E um deles provavelmente impediria o uso da nossa urna eletrônica atual por lá. É que a lei alemã exige que o qualquer eleitor, o cidadão comum, o popular, possa aferir se o voto que foi efetivamente registrado na urna no dia da eleição corresponde exatamente à sua escolha. E é dificílimo, em um sistema puramente eletrônico, conciliar isso com o outro requisito, que é o direito do eleitor ao voto secreto.

Este julgamento está publicado também em inglês no site do tribunal e a ementa da decisão diz o seguinte:

(…) 2.   Quando se utilizam urnas eletrônicas, o cidadão deve poder verificar os passos essenciais do processo de votação e da apuração dos resultados, sem a necessidade de ter um conhecimento especializado.

Para que não pairem dúvidas, mais adiante o tribunal alemão esclarece: (…) Porque mesmo que a memória da votação possa ser lida novamente a qualquer momento após o dia das eleições, com a ajuda da máquina de votação, o objeto de tal recontagem seriam apenas os votos armazenados eletronicamente, os quais nem os eleitores, nem a mesa eleitoral podem verificar se foram corretamente gravados. O cidadão não pode verificar os passos essenciais da apuração, se a recontagem ocorrer novamente dentro da própria urna eletrônica. (§148 da versão em alemão, §150 na versão em inglês).

O tribunal ainda menciona, no mesmo parágrafo, que o fato da máquina de votação estar em uma caixa lacrada não suprime esse direito essencial do eleitor. Ou seja, na visão do Tribunal Constitucional Alemão, máquinas de votar precisam atender, entre outros, aos seguintes critérios:

  • O cidadão deve ser capaz de entender os passos essenciais do processo de votação na máquina, sem precisar da ajuda de um técnico;
  • O cidadão e a mesa de votação devem poder recontar os votos, sem que, para isso, seja necessário recorrer à própria máquina de votação;
  • O cidadão precisa ter a capacidade de aferir se os votos gravados na máquina correspondem aos votos que os cidadãos deram no dia da eleição.

O que os ministros alemães deixam claro, é que o protagonista do processo eleitoral é o cidadão, ao qual a máquina deve servir e não o contrário. Portanto, analisando a decisão alemã, nossa Urna Eletrônica desenvolvida pela nossa Justiça Eleitoral, provavelmente seria reprovada para uso lá. Simplesmente por não possibilizar ao eleitor fazer a conferência cruzada entre o que está registrado na memória da máquina e os votos que foram originalmente dados pelos cidadãos. Além do que, a própria urna é que acessa e totaliza os registros e dificilmente qualquer um de nós poderia entender o que passa em seu interior, sem o apoio de um profissional especializado em cibernética e eletrônica.

Se a urna tivesse a impressora de votos, contudo, provavelmente ela seria aprovada nesses critérios alemães. Isso porque o eleitor fisicamente teria a oportunidade de conferir o voto que a urna registrou e, após as eleições, poderia ainda contar os votos em papel e conferir com o que está registrado eletronicamente na urna.

Qualquer dispositivo é fraudável ou manipulável e há inúmeros exemplos na história. Um exemplo veio da própria Alemanha. Foi o Dieselgate, quando uma grande fabricante de carros incluiu linhas de código maliciosas nas centrais eletrônicas dos carros com motor turbodiesel. Com esse código, o carro detectava quando estava em um banco de provas e alterava suas configurações para poluir menos. Nesse modo menos poluidor, o consumo aumentava e as peças se desgastavam mais rapidamente, porém conseguiam reduzir as emissões para passar nos testes. Depois, quando ia para as ruas, o carro voltava ao modo poluidor, diminuindo o consumo e preservando as peças. Com isso o fabricante conseguiu ludibriar a poderosa EPA, agência ambiental americana e os órgãos ambientais da California. E só foi pega porque um professor da Universidade da Virginia Ocidental aferiu as emissões em condições reais de utilização do carro, com ele na estrada.

Não se está acusando aqui quem quer que seja de fraude e coisas do gênero. Longe disso. O ponto que gostaria de ressaltar como conclusão é que, embora reconheça o avanço do sistema eleitoral brasileiro com a Urna Eletrônica, o processo teve um efeito colateral, que foi o de afastar o protagonismo do cidadão.

A corte alemã reconheceu como direito fundamental do cidadão naquela democracia o de conferir se seu voto foi registrado corretamente e se os votos registrados em uma máquina correspondem à vontade dos eleitores. Aqui no Brasil, nossa corte constitucional optou pela obscuridade. Deu-se a ministros e tecnocratas a missão de nos defender de nós mesmos.  À população, resta confiar, em um ato de fé, que o registrado eletronicamente nas urnas corresponde à sua vontade.

Ou, como disse Brizola, “Perdemos o direito de recontagem”.

* Renato de Castro Menezes é Advogado atuante nas áreas de Tecnologia, Direito Digital, Privacidade e Proteção de Dados.

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2 Comments

  1. Pedro Parana

    Excelente…muito bom.
    Vamos ter impressora para a impressão do voto para que o eleitor confira o seu voto que fica depositado na urna.
    Deve ser como uma nota fiscal que fica na memória e o eleitor deposita numa urna.

  2. Alisson

    Muita cautela é necessária para analisar esse tema. O fato de manter-se impressos armazenados é justamente o que oportuniza a fraude. No Brasil seria extremamente fácil trocar uma urna com papeis impressos por novos papeis fraudados, ainda mais se o governante controla e influencia os contingentes militares, responsáveis pela segurança do processo, criando-se o pretexto para anular o pleito. Outro ponto é que os votos digitais são criptografados e armazenados em uma unidade separada, permitindo-se, assim, a conferência, auditagem e, se o caso, recontagem.

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