Crispação cansou a Argentina

Clovis Rossi, na Folha de São Paulo

Não foi exatamente um modelo inteiro que ruiu nas urnas argentinas deste domingo, 22, mas, acima de tudo, a maneira rude de exercê-lo.

Que o modelo não foi inteiramente derrotado prova-o o fato de que seu antagonista, o vencedor Mauricio Macri, empenhou-se durante toda a campanha em jurar que não mexeria nos programas sociais que deram popularidade primeiro a Néstor Kircher e depois à Cristina Kirchner.

Natacha Pisarenko-29.out.15/Associated Press
Argentina's President Cristina Fernandez waves at the government house in front of a painting of her late husband Nestor Kirchner in Buenos Aires, Argentina, Thursday, Oct. 29, 2015. Fernandez's chosen successor, presidential candidate Daniel Scioli, will face opposition candidate Mauricio Macri in a presidential runoff election on Nov. 22. (AP Photo/Natacha Pisarenko) ORG XMIT: XNP106
Cristina Kirchner acena a simpatizantes ao lado de um retrato do marido e antecessor, Néstor, em Buenos Aires

Essa fatia do modelo —o esforço de de inclusão social, sincero ou demagógico, a juízo de cada leitor— é um ativo que veio para ficar e não só na Argentina.

No Brasil, por exemplo, não houve, em 2014, e não haverá em 2018 ou depois qualquer candidato, por mais reacionário que seja, capaz de pôr em dúvida a permanência do Bolsa Família, para citar apenas um dos símbolos dos governos do PT, como o foi na Argentina, ainda que com outro nome (Asignación Universal por Hijo).

Outros aspectos do modelo, como o excesso de intervenção do Estado, podem ter sido rejeitados nas urnas deste domingo, mas é algo que só dirão as análises sociológicas que o tempo do jornalismo dificulta.

O que, sim, do meu ponto de vista, pode se afirmar com segurança que perdeu foi a maneira imperial de exercer a Presidência, a crispação permanente que Cristina, muito mais que Néstor, impôs ao país.

Produziu um estado de ânimo que só é adequadamente descrito por uma palavra espanhola, “hartazgo”. Em português, é cansaço, esgotamento, mas “hartazgo”, ainda mais com o forte acento portenho, soa definitivo.

Constata para “El País”, por exemplo, o intelectual En­ri­que Va­lien­te Noai­lles: “A Ar­gen­ti­na se fartou de si mesma, de viver em um ambiente que produz seu próprio monóxido de car­bono”.

Reforça Ricardo Kirschbaum, que, como editor-chefe do “Clarín”, foi um dos alvos permanentes da crispação: “Hoje se acaba um ciclo político que fez do antagonismo sua razão de ser”.

Até Daniel Scioli, o candidato (a contragosto) de Cristina, admitiu na antevéspera da votação: “Talvez estejam [os eleitores] irritados com as brigas, mas comigo é diferente. Sou um homem de diálogo, como já demonstrou a minha vida”.

É bom ressaltar que outros regimes que se dizem de esquerda na América do Sul, Brasil inclusive, adotaram o mesmo mecanismo de satanizar os adversários, tratando-os como inimigos da pátria.

Pode-se, por extensão, supor que o cansaço dessa confrontação permanente estender-se-á além da Argentina, quando houver eleições.

Aliás, Jorge Fontevecchia, diretor do grupo Perfil, outro alvo da crispação do kirchnerismo, dizia à Folha ainda antes da eleição:

“Creio que vivemos [Brasil e Argentina] ciclos parecidos. Essa mudança aqui [na Argentina] talvez tivesse ocorrido também na última eleição brasileira, caso ocorresse alguns meses depois”.

O palpite parece correto: Dilma Rousseff ganhou a eleição com pequena diferença, mas depois dela sua popularidade mergulhou num infernal tobogã.

Como a Argentina, o Brasil parece cansado desse perene “nós contra eles/eles contra nós”.

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