A ditadura acabou com a direita no Brasil. Já ouvimos diferentes formulações dessa frase. O maior sintoma disso foi a Constituição de 1988, ao estabelecer um sem-número de “direitos sociais” que a sociedade até hoje não consegue pagar. Ela foi saudada por Ulysses Guimarães como a “Constituição cidadã” e aplaudida pelas garantias à democracia, às minorias e aos direitos humanos. Mas foi considerada logo na primeira hora um monumento à insensatez econômica, por expoentes do pensamento liberal como Roberto Campos ou Mário Henrique Simonsen.

Uma das sequelas do regime militar tem sido a alternância no poder de governos que representam diferentes matizes daquilo que podemos classificar como “esquerda”. Nenhum partido gosta de se dizer “de direita”. No nosso espectro partidário, a direita está em geral identificada com um partido que se diz “social-democrata”, o PSDB, e outro que se identifica, no próprio nome, como “democrata”. Não há algo que se compare aos Republicanos nos Estados Unidos ou aos Conservadores na Inglaterra. Um partido sólido e expressivo, tido como “de direita”, inexiste no Brasil.

Até agora.

Se o fim da direita foi uma sequela da ditadura, seu renascimento, já é possível vislumbrar, será uma sequela dos governos petistas. Antes de elaborar essa ideia, contudo, épreciso fazer uma ressalva fundamental. Não há, na sociedade brasileira, consistência ideológica entre ideias tidas como de direita ou de esquerda, como constatei no primeiro da minha série de posts “A armadilha da polarização na política”, publicada no final do ano passado. Mas, embora não representem grupos sociais definidos claramente, os termos “direita” e “esquerda” têm um sentido histórico e, acima de tudo, emocional e afetivo.

A maior prova disso se deu na votação do impeachment da presiddente Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados. Ao votar contra, alguns deputados invocaram ícones da esquerda na luta armada contra ditadura, como Carlos Marighella. E ninguém chamou tanto a atenção quanto o deputado Jair Bolsonaro, ao fazer diante dos microfones uma homenagem ao torturador Carlos Brilhante Ustra. Tanto torturadores quanto guerrilheiros cometaram crimes inomináveis contra os direitos humanos – todos eles anistiados na redemocratização. Mas apenas a declaração de Bolsonaro virou manchete no mundo todo.

É possível atribuir isso a um sentimento “predominantemente esquerdista” que impera na imprensa. Ou à estratégia de marketing político astuta empregada por Bolsonaro, sempre baseada em escandalizar os sentimentos “politicamente corretos”. O motivo real, contudo, é outro: pesquisas sugerem que, houvesse hoje uma eleição presidencial, Bolsonaro teria algo como 8% a 10% dos votos. Um candidato que nunca teve receio em se dizer “de direita” tem de repente uma inesperada viabilidade eleitoral. Essa a novidade dos 13 anos ininteruptos de PT no poder.

Muitos veem na candidatura Bolsonaro, e não sem motivo, uma esperança de renascimento da direita. Mas qual direita? O Brasil é um país em que essa faixa de frequência no espectro ideológico sempre foi tão estreita que não é incomum ler por aí quem identifique um certo pensamento “liberal-conservador” – seja lá o que signifique esse oximoro. Para não cair em paradoxos do tipo, e sempretensão de ser exaustivo ou científico, é possível classificar aquilo que se reúne sob a tenda da “direita” em pelo menos quatro grupos. Historicamente, todos eles surgiram como reação aos marxistas, divididos no final do século XIX em socialistas e sociais-democratas. Mas cada um desses grupos “de direita” é animado por sentimentos distintos, fissuras que tendem a ficar mais claras no futuro. Ei-los:

A direita econômica – São os liberais clássicos, surgidos no século XVIII, cujas ideias ganharam novo impulso no século XX, com a oposição ao comunismo e ao nazismo. Existem em várias vertentes e rezam por diversas cartilhas, de nomes como Friedman, Hayek, Mises e até a libertária filósofa Ayn Rand. No Brasil, o sentimento que os une é, antes de tudo, reduzir o papel do estado na economia e na vida do cidadão. O liberal genuíno é sempre pró-mercado – embora não necessariamente pró-empresas (ou pró-business), posição daqueles que defendem medidas protecionistas ou a escolha de vencedores pelo Estado. Desde a redemocratização, ao contrário do que pretende a propaganda esquerdista, liberais genuínos nunca tiveram nenhuma expressão política notável no país. Hoje, o espécime mais representativo dessa tendência é o Partido Novo, fundado há pouco tempo e virtualmente desconhecido.

A direita religiosa – São os conservadores, que adquiriram expressão política na reação às revoluções europeias nos séculos XVII e  XVIIl. O conservador acredita que mudanças não representam necessariamente progresso, tem na fé religiosa e na tradição seus principais guias para as decisões políticas. A direita conservadora é hoje em geral movida por posições comportamentais: contra a legalização do aborto, contra o casamento gay, contra aquilo que chama de “ideologia de gênero” e a favor da família tradicional. Nos Estados Unidos, a ascensão dos republicanos nos anos 1980 foi resultado de uma aliança entre a direita econômica e os conservadores religiosos, promovida por ideólogos como William Buckley, daNational Review, e levada a cabo por Ronald Reagan. No Brasil, a direita conservadora está representada de modo expressivo noParlamento, sobretudo pela bancada evangélica, cujo tamanho corresponde aproximadamente à expressão dessa população no país. Mas não há unidade partidária. Há conservadores dispersos por várias legendas.
A direita nacional-militarista – É nesse grupo que entra Bolsonaro. A raiz do pensamento nos nacional-militaristas também é moral, como nos conservadores religiosos. Mas não se trata da moral voltada exclusivamente para os costumes e para o comportamento. O foco deles é o combate ao crime, a manutenção da lei e da ordem, a autoridade forte para manter a grandeza do Brasil enquanto nação. São a favor da pena de morte, do combate duro aos criminosos, contra organizações de direitos humanos, em alguns casos lenientes com a tortura e saudosos do regime militar – no limite, até mesmo favoráveis à volta da ditadura. Há uma aliança natural entre os nacional-militaristas e os conservadores religiosos, mas os sentimentos que movem ambos os grupos são distintos.

 

A direita fascista – Embora ela não tenha expressão nenhuma no Brasil atual, é importante mencioná-la, sobretudo para diferenciá-la da direita militar-nacionalista, com a qual compartilha boa parte da agenda. O que distingue o fascista é o repúdio à democracia e às instituições do Estado de direito. Ele não é apenas a favor de medidas duras e enérgicas contra criminosos ou comunistas. É em geral racista, organiza milícias uniformizadas e parte para o confronto nas ruas. Seus alvos principais, na Europa, são imigrantes, grupos religiosos como muçulmanos e judeus, gays e negros. No Brasil, o fenômeno mais próximo de milícias fascistas em tempos recentes foram os black blocs nas manifestações de junho de 2013  – na tática violenta mais que na ideologia. Mesmo assim, foi um movimento de expressão ínfima.

A maior viabilidade política da direita pode ser positiva para o Brasil. Ao contrário do que imaginam os esquerdistas presunçosos, cheios de receitas para fazer o bem, nem todo mundo é contra a pena de morte, a favor do aborto, do casamento gay ou da liberação da maconha – assim como, ao contrário do que pregam as receitas na prateleira da direita liberal, nem todo mundo é a favor das privatizações, da livre-concorrência ou da meritocracia. Numa democracia saudável, todas as opiniões precisam estar representadas.

Todo país que se preze tem partidos de direita respeitáveis, que contribuem ao trazer pontos de vista diversos para o debate. No Brasil, parte significativa da população defende ideias de direita, e a ausência desses grupos no espectro partidário é uma distorção da nossa democracia.  A principal consequência da falta de direita no Brasil é econômica. O país sempre se ressentiu da falta de liberais genuínos no poder e nunca mexeu em seus vespeiros estatais por causa disso – algo inevitável se quisermos recuperar a economia.

Agora, contudo, a direita que emerge eleitoralmente é a nacional-militarista, representada por Bolsonaro, com um forte componente religioso-conservador, presente na bancada evangélica. Muitos liberais fizeram uma aliança de ocasião com esses grupos, mas, como afirmei acima, ela é frágil. Não tem resistido a embates nas redes sociais ou mesmo nas manifestações de rua.

Nos anos 1990, observadores atentos sabiam que um dia o PT chegaria ao poder e era preciso se preparar para isso. O mesmo pode ser dito hoje dos partidos de direita. Nossa necessidade maior é a reforma no Estado. Seria lamentável se o preço a pagar por isso fosse a eleição de um nome incapaz de zelar pelos direitos humanos ou das minorias, pilares da nossa democracia que foram tão difíceis de conquistar.