Desde 2008

Editor:
Cláudio Osti

Crônica em Modo de Espera: Favor Aguardar

0 comentário

Crônica em Modo de Espera: Favor AguardarPor Mário César Carvalho

Faz tempo que não escrevo, e não é por falta de assunto. O mundo está transbordando de pautas, como sempre. Acontece que tem horas em que a cabeça entra em modo avião. Não por escolha, mas por sobrevivência. É como se o cérebro dissesse: “Olha, se eu continuar processando tudo isso, vou fritar igual micro-ondas com prato de feijão esquecido dentro.” Aí ele trava. Simplesmente trava.
Se eu pudesse mostrar a tela mental que carrego ultimamente, você veria aquela ampulheta girando infinitamente. Ou a famosa bolinha colorida do Mac, rodando, rodando, rodando… e nada de abrir o arquivo da inspiração. Me sinto como aquele tiozinho que aperta todas as teclas do caixa eletrônico, menos a certa, e depois ainda culpa o banco.
O que causa esse bug? Ah, minha amiga, meu amigo, a resposta é ampla, geral e irrestrita. É um combo de absurdos, uma maratona de sandices, um rodízio de bobagens que faria até o mais tolerante dos monges tibetanos pedir licença para ir dar um grito no deserto.
A sensação é de que entramos num reality show involuntário, onde ninguém sabe quem são os jurados, mas todos estão sendo avaliados por critérios obscuros: “quantas fake news você compartilhou essa semana?” ou “quantas opiniões aleatórias postou com convicção sobre assuntos que desconhece?”.
É o império do achismo, a festa do textão mal embasado, a era de ouro do coach de tudo, da mentoria — inclusive daquilo que não entende. A cultura virou uma grande live em 480p, cheia de travadas, onde o conteúdo é secundário e o que importa mesmo é o filtro no rosto.
Tem dias que me sinto assistindo um debate sobre física quântica entre um vendedor de cursos online e um ex-BBB, com transmissão ao vivo e comentários do público tipo: “Isso aí, falou tudo! Nem sei exatamente o que ele falou, mas falou bonito.”
E aí você me pergunta: “Mas por que não escreve sobre isso tudo?” Eu até tento. Ligo o notebook, abro um vinho, coloco uma música instrumental pra fingir clima criativo, respiro fundo e… nada. Fico encarando a tela como se fosse parede branca de consultório odontológico e a inspiração, essa senhora caprichosa, parece ter tirado férias permanentes em alguma praia exótica, onde não tem Wi-Fi e ninguém fala em crise existencial.
A escrita, que antes vinha como enxurrada (às vezes até tsunami descontrolado), hoje aparece com a pontualidade de técnico de internet: “Estarei aí entre 8h e 18h.” E você que espere. E quando aparece, dá meia dúzia de toques e some, como adolescente que só quer usar o Wi-Fi da casa e depois volta pra rua.
O bug é coletivo. Tenho conversado com gente de letra solta e está todo mundo meio travado. Uns desistiram do teclado e foram pintar paredes, outros se afundaram em séries coreanas e tem até quem voltou a escrever bilhetes à mão só pra lembrar como é formar frases fora do Instagram.
É uma pane emocional que mistura cansaço informativo, saturação de vozes rasas, excesso de opinião sem pausa e falta de silêncio interior. Hoje até o silêncio tem concorrência: ele disputa espaço com o TikTok da vizinha e o áudio de sete minutos do grupo da família.
O mais curioso é que tudo isso é tragicômico. Trágico porque estamos assistindo a um desmonte cultural onde conhecimento virou artigo opcional. Cômico porque os absurdos são tão escancarados que beiram o pastelão.
Tem gente ensinando “manifestação com arroz cru”, outros vendendo “cura de traumas ancestrais com dança circular”, e ainda aqueles que juram que a Terra é plana, mas se recusam a andar de patinete porque “não têm equilíbrio”. A realidade virou episódio inédito do Chaves, só que sem o Professor Girafales pra colocar ordem.
Confesso: eu queria escrever bonito. Queria fazer uma crônica leve, com cheiro de café e barulho de chuva ao fundo. Queria falar do senhor da banca que segura o jornal com as duas mãos, como se fosse um tesouro, ou da senhora que leva flores murchas ao túmulo do marido todos os domingos porque “ele sempre gostou delas assim, meio tristes”.
Queria escrever sobre o cachorro que late só pra moto vermelha, sobre a criança que pergunta se a lua também fica triste, ou sobre o guarda-chuva esquecido no banco da praça que ninguém pega porque já está molhado demais.
Mas não dá. Toda vez que tento entrar nesse clima sensível, vem uma notícia me puxando pela orelha: “Influencer é preso por ensinar seguidores a respirar dióxido de carbono para ativar o chakra da prosperidade.” E pronto. Lá se vai minha poesia, arrastada pela correnteza do nonsense.
Então o que fazer? Desligar tudo e ir plantar hortelã? Talvez. Mas antes disso, acho que ainda dá pra tentar uma última coisa: resistir escrevendo. Mesmo com o travamento, mesmo com o bug, mesmo com os absurdos zunindo na cabeça como mosquitos de verão.
Escrever como quem limpa os óculos embaçados no pano da camiseta, como quem desabafa com o espelho, ou como quem conversa com um amigo imaginário no balcão da padaria. Escrever mesmo que ninguém leia, ou que leiam e não entendam, ou que entendam e discordem. Porque no fim o que mais me assusta não é a discordância, mas a indiferença.
O silêncio que me travou talvez não seja o fim. Quem sabe é apenas uma pausa necessária pra entender o que ainda vale a pena dizer.
Se não dá pra mudar o mundo, que a gente pelo menos ria dele… e de nós mesmos. Porque já passou da hora de entender que rir de si é sinal de saúde mental. Se você nunca se flagrou discutindo sozinho no chuveiro ou inventando diálogos com o entregador de iFood antes dele chegar, talvez esteja levando tudo a sério demais.
A vida já é pesada por si só. A graça está em tropeçar na calçada, rir, olhar pros lados e perceber que ninguém viu. Ou que viram e riram junto. Está em fazer lista de supermercado no bloco de notas e esquecer o celular em casa. Está em tentar comer saudável e acabar devorando quatro pães de queijo de uma vez “só pra equilibrar”.
Não tenho um final redondinho pra esse texto. E quer saber? Nem quero. O mundo está tão carente de pausas que até o ponto final anda cansado. Então encerro com uma vírgula, como quem diz: a conversa continua, só preciso respirar um pouco antes.
Talvez o bug passe e as mãos destravem. Talvez a inspiração volte com uma sacola de pão quente e um rascunho de ideia no bolso. Até lá, sigo tentando, rindo quando dá, silenciando quando precisa… e escrevendo quando o Word deixa.

Mário César Carvalho é advogado, professor de direito e cronista deste prestimoso portal

Compartilhe:

Veja também

Deixe o primeiro comentário