A sutileza da crueldade
Por Livia Oliveira
Finalmente pude ir ao cinema e assistir, ao lado da minha família, o filme Ainda estou aqui, com três indicações ao Oscar. Ao final da exibição, percebi a irônica coincidência. Eu estava ali justamente no dia em que a morte de Rubens Paiva completava 54 anos. Ele foi morto entre 20 e 22 de janeiro de 1971, em algum quartel militar. Ninguém – ou apenas alguém – sabe o que fizeram com o corpo.
O filme é sobre a ditadura?
O filme não é sobre a ditadura?
Eu vinha acompanhando esse debate improdutivo em jornais e mídias sociais havia dias. É como se o filme não pudesse tocar na ferida.
Mas toca.
E levanta a beirada da casca, deixando entrever o minimalismo do terror.
Quem gastou o francês pra falar em “atuação monocórdia” de Fernanda Torres (indicação de melhor atriz) não pegou a intensidade do refrão de uma música que começa no meio da sala, com a delícia do amor de uma família solar, cheia de vida, que de repente é forçada a um mergulho silencioso no escuro hediondo de uma câmara de tortura. Quanta frieza e força foram necessárias para poupar as crianças da sutileza da crueldade?
A quietude é quebrada pela cena do atropelamento do cachorro. Único momento em que a protagonista, inspirada na Eunice Paiva, se descontrola. De repente, ela se depara com a concretude da morte e efetivamente enterra um corpo. Um ritual com sentido diferente para ela, na solidão da consciência sobre o sequestro de sua história. Até um cão vira-latas, recolhido da rua, teve um enterro digno e cercado de afeto. Quantas famílias brasileiras ainda passam por isso, especialmente as periféricas?
Naquele momento de luto metafórico também foi enterrada a passividade diante do óbvio.
Hora de renascer e viver, fazendo da risada corajosa e da resiliência uma vitória subversiva contra a covardia obscura. Resta saber se a premiação estrangeira, acostumada à violência escancarada em sequências de muita ação, terá olhos para ver e ouvidos para ouvir os gritos sufocados.
Livia Oliveira é jornalista, escritora, Mestre e Doutora em Estudos da Linguagem (UEL E FLUP)
fantástico, pelo esclarecimento quase perfeito e despretencioso no sentido cultural, me resta economizar o dinheiro dos ingresso