É O SEGUINTE: QUER DIZER.... EU TAMBÉM NÃO SEI. MAS SUPONDO QUE SOUBESSE, EU DIRIA: SEI LÁ, ENTENDE?
Por Mário César Carvalho
Sempre quando me encontro naquelas situações de total falta do que fazer, minha veia masoquista me leva a assistir as transmissões da TV Câmara ou os debates entre os candidatos a prefeitos nas próximas eleições municipais. É sofrível, mas interessante.
Isso porque para além do embate físico, que “vez ou outra rola”, tem o MMA verbal, que “sempre rola”, onde o golpe mais utilizado pelos debatedores é mentir tão descaradamente, que faz o João Grilo do Auto da Compadecida parecer o Major Vidigal das Memórias de um Sargento de Milícias.
Dificilmente os golpes machucam porque, via de regra, quem os recebe tem cara de pau. Assim é, então, que acusações, defesas, afirmações ou negações são desferidas a “torto e a direito”, tendo por base informações e dados falsos inventados previamente ou “tirados da cartola” ao sabor da necessidade do momento, sem que aqueles que as emitem sequer fiquem com um traço, por mínimo que seja, de vermelhidão na face. Pior que na maioria das vezes esse comportamento “não dá em nada” e a vida segue.
Esse fenômeno da falta de vergonha na cara tem a ver com aquilo que alguns pensadores contemporâneos denominaram como era da “pós verdade”, expressão popularizada pelo dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich, em 1992. Em um artigo na Revista The Nation ele usou o termo para descrever a forma como o público americano aceitou o escândalo Irã-Contras (1986) e as mentiras em torno da Guerra do Golfo (1992), afirmando que após esses eventos, as sociedades entraram em uma nova fase, na qual as pessoas -a maioria, mas nem todas- passaram a ignorar os fatos em prol de narrativas convenientes ou emocionalmente confortáveis para elas.
Mas foi somente nas décadas seguintes, especialmente a partir de 2016, que essa questão ganhou maior destaque, após eventos como o Brexit no Reino Unido e as eleições presidenciais nos EUA. Nesse novo contexto, a expressão passou a ser usada para descrever um fenômeno mais amplo, no qual as emoções e opiniões pessoais começaram a ter mais importância do que os fatos objetivos no discurso público.
E assim foi que este conceito passou a representar um novo desafio, não só para a comunicação, mas também para a política, a mídia e as interações sociais em um mundo onde a verdade parece cada vez mais fragmentada e relativizada.
É importante notar que o conceito de “pós-verdade” não nega a existência da verdade objetiva. Em vez disso, ele aponta para um ambiente onde a verdade é negligenciada ou desprezada em favor de narrativas que reforçam visões muito particulares de mundo.
Esse fenômeno não surgiu de forma espontânea; ele é resultado de uma combinação de fatores sociais, culturais e tecnológicos que se intensificaram nas últimas décadas como, por exemplo, o advento das redes sociais e o acesso universal à rede mundial de computadores, que universalizaram a possibilidade das pessoas de publicar e compartilhar informações. Isso, por um lado, democratizou o acesso à informação, mas, por outro, abriu portas para a disseminação massiva de notícias falsas (fake news para os moderninhos) e desinformação, a partir do momento eu que plataformas como Facebook, Twitter e YouTube se tornaram canais primários para a circulação de notícias, mas com pouca ou nenhuma verificação dos fatos.
Já as redes sociais também influenciaram esse processo já que criaram as chamadas “bolhas de filtro”, nas quais os algoritmos tendem a mostrar às pessoas, majoritariamente, aqueles conteúdos que reforçam suas crenças pré-existentes. Como resultado, a verdade objetiva acabou sendo diluída em meio a um mar de opiniões, crenças e falsidades, todas tratadas como equivalentes.
Essa “nova era” pode ser vista, também, como resultado de uma crescente corrente social de pensamento que questiona a existência de uma verdade absoluta ou objetiva. Esse relativismo epistemológico argumenta que todas as verdades são, de certa forma, construções sociais, moldadas pela cultura, linguagem e história de quem as defende.
Essa forma alternativa (tipo Raul Seixas, Paulo Coelho) de ver e viver a vida, que inicialmente surgiu como uma crítica aos sistemas de poder e às “verdades oficiais”, acabou por gerar um ambiente no qual tudo pode ser questionado e onde as fronteiras entre fato e opinião se tornam nebulosas, criando um ambiente que alimenta o ceticismo em relação às fontes tradicionais de verdade, como a ciência, o jornalismo e as instituições governamentais.
A política contemporânea também tem contribuído para a ascensão da pós-verdade. Em muitos contextos, políticos e líderes passaram a utilizar técnicas de manipulação da informação, apelando diretamente às emoções e identidades de seus eleitores, em vez de basear suas propostas em fatos objetivos, inclusive, frequentemente lançando mão, sem nenhum pudor, da desinformação.
A noção de “fatos alternativos”, introduzida por “assessores inteligentinhos” de determinadas figuras políticas influentes, encarta a ideia de que a verdade pode ser moldada conforme os interesses políticos do momento, o que gera uma divisão ainda maior na confiança pública naquilo que é verdadeiro ou falso.
A proliferação da pós-verdade gera uma série de consequências negativas para a sociedade que vão desde a desinformação até o colapso do diálogo democrático e da coesão social, com consequências bastante ruins como, por exemplo, entre outras, a polarização política e social.
À medida que a verdade se fragmenta, cresce a desconfiança nas instituições tradicionalmente vistas como guardiãs da verdade criando um ambiente fértil para a proliferação das teorias da conspiração, que corrói ainda mais a confiança pública e que pode resultar em consequências devastadoras, como ocorreu durante a pandemia de COVID-19, quando a desconfiança de grande parte da população em relação a autoridades de saúde pública dificultou os esforços de vacinação e controle da doença.
A democracia depende da capacidade de seus cidadãos de debater e deliberar com base em fatos compartilhados. Quando a verdade é fragmentada e substituída por narrativas personalizadas, o discurso democrático é enfraquecido, já que em vez de discutir políticas e ideias com base em evidências, o debate público se transforma em uma guerra de versões concorrentes da realidade, que volta e meia terminam em “banquetadas” desferidas em rede nacional, ao vivo e à cores, fatos que infelizmente reforçam o sentido da expressão “República de Bananas”, cunhada pelo humorista norte americano O. Henry em 1904.
A era da pós-verdade representa um desafio complexo para a sociedade contemporânea já que, quando fatos são ignorados ou distorcidos em prol de narrativas que apelam às emoções e crenças pessoais, a própria estrutura social, política e moral fica em risco. Combatê-la exige não apenas a valorização da verdade objetiva, mas também o fortalecimento da educação e da capacidade de diálogo. A verdade continua sendo um alicerce essencial para a convivência humana, e defendê-la em tempos de pós-verdade é uma tarefa de todos.
Mário César Cavalho é advogado, professor de direito e colunista este poderoso blog